16/11/2013

NENHUM E QUALQUER

Muitas dúvidas têm ocorrido a respeito do uso de qualquer em lugar de nenhum em frases como:Não há qualquer dúvida. Estamos sem qualquer receio de ocorrer complicações. De fato, é corrente na linguagem médica e na linguagem geral o uso de qualquer com o sentido de nenhum, o que lhe dá legitimidade segundo boas normas amplamente apregoadas por bons linguistas. Apesar de ser muito adotada essa equivalência, há questionamentos de bons profissionais de letras a respeito, o que pode ser oportuno conhecer.

Uma das razões é a mudança do sentido principal de qualquer, que indica essencialmente e tradicionalmente positividade. De qual e de querqual quer na forma arcaica, qualquer indica “o que quiser”, ou “o que quer que seja”, com inespecificidade quanto ao que se refere, como está no Grande dicionário etimológico e prosódico da língua portuguesa, de F. Silveira Bueno (Bueno, 1963-1967).

Nesse contexto, observem-se as consignações dicionarizadas como primeiro sentido de qualquer. Aurélio (Ferreira, 2009): designa coisa, lugar ou indivíduo indeterminado. Houaiss (2009): designativo de pessoa, objeto, lugar ou tempo indeterminado, equivalendo a um, uma; algum, alguma. Dicionário da língua portuguesa contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa (Academia, 2001): todo o elemento de um grupo de pessoas ou coisas, indiferenciada e indeterminadamente, sendo parafraseável por “não importa qual”, “este ou aquele”. Dicionário Unesp (Borba, 2004): usado para referir-se indeterminadamente a pessoa ou coisa, não importa qual. Aulete (1980): serve para indicar um indivíduo um lugar ou um objeto indeterminado e equivale a um ou outro, uma ou outra, este ou aquele, esta ou aquela.

Por motivo de clareza, mas sem inflexibilidades ou preconceitos, em linguagem formal científica ou acadêmica, pode-se usar, sempre que for possível, cada palavra de acordo com sua classe gramatical, ou seja, substantivo como substantivo, adjetivo como adjetivo, pronome como pronome, verbo como verbo e outros casos, exceto se não houver outra opção.

Com o mesmo objetivo de nitidez, também sem radicalismos, é importante buscar o uso de cada palavra em seu sentido principal ou próprio, em geral, dado nos bons dicionários como o primeiro sentido, para, assim, evitar aplicações figurativas, por extensão, gírias, regionalismos, modismos, neologismos e estrangeirismos desnecessários, sobretudo quando possam causar obscuridades e questionamentos.

Com efeito, o uso de qualquer por nenhum pode causar ambiguidade ao incorrer em desvio de sentido essencial de qualquer. Isso pode configurar imperfeição redacional do ponto de vista da linguagem acadêmica, conforme, entre outros gramáticos, ensina Cegalla (1999): “Ambiguidade. Defeito da frase que apresenta mais de um sentido, mais de uma interpretação”. Se dissermos, por exemplo: “Não quero qualquer remédio”, há dubiedade de sentido. Poderemos completar: “O que quero é aquele que o médico receitou”. Mas, se dissermos “Não quero nenhum remédio”, a firmação torna-se clara. Não cabem complementações nem outras interpretações quanto ao seu sentido, sem, portanto, dubiedade. Para não questionar ou afetar a clareza, não se há, como uso preferencial, de acolher tal desvio semântico em textos formais, acadêmicos, científicos, normativos ou jurídicos,

Acrescentam-se, ainda, alguns estudos a respeito desse uso em comento. A rigor, há contraste de significado entre nenhum e qualquer. Nenhum, essencialmente, tem sentido de negatividade, significa nada em absoluto: Não há nenhuma dúvida a respeito do assunto. Tomou o remédio sem nenhuma objeção. O período pós-operatório transcorreu sem nenhuma complicação grave. A medicina será exercida sem nenhuma discriminação, ou seja, sem discriminação de nenhuma natureza. O ambulatório não tem nenhum paciente. Qualquer significa tudo, qualquer coisa ou pessoa. A proposição que em matemática duas negações significam positividade e, por conseguinte, se inferir que não...nenhum em português equivale a todos não subsiste à lógica elementar, visto que matemática e linguagem são saberes diferentes, já que matemática é ciência exata, fundamentada em cálculos objetivos, e linguagem, mesmo a gramatical normativa, prescinde desses princípios e baseia-se em convenções e na subjetividade humana. A matemática tem formulações cujos significados são os mesmos em toda parte. A linguagem tem formulações com significados de amplíssima variação. De fato, não se poderia pensar, como exemplo, que “Não quero nenhum remédio” significa “Quero todos os remédios”.

Pelo exposto, em proposições como “O paciente não apresenta qualquer sintoma de lesão esplênica”, “Não vai haver qualquer complicação”, “Não há qualquer problema”, o pronome qualquer pode ser adequadamente substituído por nenhum/a ou algum/a. Sugestões: “... não apresenta nenhum sintoma... (ou: sintoma algum)”, “Não vai haver nenhuma complicação (ou complicação alguma)”, “Não há nenhum problema (ou: problema algum)”.

Afirmam bons linguistas, com razão, que todas as formas existentes na linguagem são patrimônio do idioma. Nesse contexto, é legítimo o uso de qualquer no sentido de negatividade, e não cabe citar esse uso como errôneo ou mesmo indevido. No entanto, em linguagem formal, científica, técnica e acadêmica é preferencial, mas não exclusivo, o uso das regras gramaticais normativas por sua disciplina, organização e estrutura elaboradas e preconizadas por sérios e dedicados estudiosos do idioma através dos séculos. Além disso, tendo em vista as críticas existentes emanadas de instrutos profissionais de letras e por nenhum em rigor não ser sinônimo de qualquer (têm até sentido oposto), convém evitar usar sistematicamente ou como a opção correta o segundo em lugar do primeiro. Constitui bom senso evitar formas questionáveis, sobretudo no âmbito dos profissionais de letras, e optar por construções não questionáveis ou menos questionáveis. Isso pode ser possível em quase todos os casos.

Referências

1.        ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Portugal: Editorial Verbo, 2001.
2.        AULETE, Caldas, GARCIA, H., NASCENTES, A. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, 3.a ed., Rio de Janeiro: Delta, 1980.
3.        BORBA, Francisco S. Dicionário UNESP do português contemporâneo, São Paulo: Editora Unesp, 2004.
4.        BUENO, F. S. Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa, Saraiva, São Paulo, 1963-1967.
5.        CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, 2.a ed. revisada, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
6.        FERREIRA ABH, FERREIRA MB, ANJOS M. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 4.ª ed. atualizada, 1.ª impressão, Curitiba: Ed. Positivo, 2009
7.        HOUAISS A, SALLES VM, FRANCO FMM. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1a ed, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

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